 Uma janela na Praça
Tiradentes, as reminiscências trazidas pelo casario do subúrbio, o anônimo
que maneja uma pipa invisível, todos os dias, na esquina da Rua Mem de Sá. O
Rio de Janeiro é cenário primordial para Na dobra do dia, primeiro livro de
crônicas de Marcelo Moutinho, autor cuja delicadeza e zelo com a palavra
desenham um estilo próprio, já evidente em três elogiados volumes de contos.
Ao adotar o universo carioca
como ponto de partida para sua lente de cronista, retoma um traço um tanto
esquecido nos relatos atuais do gênero. Fazendo jus à tradição de João do Rio
e Paulo Mendes Campos, Machado de Assis e Rubem Braga, Moutinho persegue as
miudezas, as marcas ao rés do chão, a matéria ordinária dos dias — não apenas
banal, mas traiçoeira. Cria relatos de lirismo ligeiro e de assombro, mas
também registros atentos de costumes e personagens, fissuras na ordem do
mundo, ironias ocultas no vaivém de encontros e desencontros, diapasões do
cotidiano.
Não à toa, Na dobra do dia é
dividido em duas partes — “Pequenos amores da armadilha terrestre” e “As ruas
pensam”, frases retiradas de Paulo Mendes Campos e João do Rio,
respectivamente. Quando não são as pulsações das ruas, é o espaço doméstico,
com suas ciladas, que invade os textos. Os mistérios da casa vazia, o amor
desmantelado, a nostalgia no chiado de um long-play. Ecos da memória — a
algaravia dos carnavais da infância, a traição na escolha do time de futebol.
Às vezes, as crônicas trazem também notícias de alhures. Como a chuva que cai
sobre o México, invisível e desconcertante, pondo “um enfeite qualquer na
tristeza”. Ou as semelhanças entre quem foi menino durante a ditadura
militar, no Brasil e em outros países da América Latina.
Como no texto que dá título
ao livro, Moutinho investe no espaço fugidio, na “hora imprecisa”, no
instante em que “a cidade é borda”. Traço inequívoco de sua literatura, a
melancolia dá o tom dos relatos. Mas também um humor fino e surpreendente,
forjado na descontração dos bares e na perspicácia dos sambas antigos, a nos
lembrar que chope de verdade é com colarinho e que, sim, há botequins que encerram
um universo inteiro. São páginas onde a leveza é só disfarce, a revelar: é
nas cenas inusitadas, fiapos quase invisíveis na trama da cidade, que pulsa a
matéria densa da literatura.
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